quinta-feira, novembro 03, 2005

Este pássaro é transmontano. Quiçá galego. Foi caçado numa manhã que recordo como fria e chuvosa, na bonita aldeia de Montesinho. Olhava o horizonte com o ar pacífico que podem admirar e mereceu da minha parte o clic fatal. Desde então jaz aprisionado em espelhos: de celofane, castanho escuro, de papel espesso e brilhante e aqui nos milhares de pixels que vos entram vista adentro. espelhos que devolvem a realidade daquele dia funesto.
Não há direito! Perdoa pássaro, a intromissão na tua vida!

começar de novo

Hoje regresso às páginas assépticas da net. Trago palavras e ideias limpas, um começar de novo. Trago luzes para iluminar o trilho e ver para onde me dirijo e com quem me dirijo.
Voltei para junto de vós, amigos, como se alguma vez me tivesse ido embora.
Trago novas, trago velhas... trago o mesmo de sempre: notícias cá de dentro, onde a novidade é cada dia. Amo-vos povo, do fundo do coração. Vocês sabem todos quem são.

segunda-feira, janeiro 24, 2005

book on progress... capítulo 4

Adquirimos as credenciais, passaportes de peregrinagem e fomos em busca do albergue que nos indicaram, um privado já que todos os municipais se encontravam lotados. WEm frente à porta gostei de ler o nome: "Sous le chémin d'étoiles". Sobre o caminho de estrelas, o caminho de Compostela.
Aquele nome, relevando directamente das origens do caminho, inspirado no milagre inicial que atraiu desde tempos imemoriais peregrinos de todas as proveniências, mostrou-se inspirador. Reza a lenda que o corpo do apóstolo foi trazido da Terra Santa para ser sepultado nos territórios onde havia pregado. Trazido pelos seus discípulos foi enterrado num bosque ancestral nos confins da Península Ibérica por onde em vida andou semeando a palavra de Jesus. E aí ficou esquecido aaté ao dia em que uma chuva de estrelas guiou um pastor ao seu túmulo, indicando o lugar exacto da sua campa. Correu mundo o milagre e não tradaram as romarias para celebrar o santo Apóstolo. Daí à construção da primeira capela foi um passo, capela que foi crescendo ao ritmo da devoção e das peregrinações que desde esses dias têm acontecido. De capela a igreja, de igreja a igreja maior, e por fim a catedral. À sua volta surgiu igualmente uma cidade que se fez destino final dos passos de muita gente.
"Sous le Chémin d'étoiles" sintetiza essas origens místicas e marca com uma energia muito positiva o início do nosso caminho.
Deixámos as mochilas no albergue, uma imensa vivenda tipicamente pirenaica com os seus telhados de duas águas e vasos de flores nas janelas, e saímos para jantar. escolhemos um sítio barato, uma pizzaria, para não esbanjarmos toda a fortuna logo no primeiro dia, e depois do repasto demos uma volta pelas redondezas para nos inteirarmos das belezas locais. Entrámos na igreja, quase fortaleza, subimos a rua princuipal, espreitámos as lojas de souvenirs e depois deixámo-nos ir por uma vereda na margem do rio que nos guiou até uma ancestral ponte romana. O barulho da água e o restolhar das folhas das árvores confundiam-se numa melodia apaziguadora, bálsamo ideal para acalmar as nossas almas ansiosas de experimentar a rota e a propalada espiritualidade do caminho jacobeo.
Quando finalmente regressámos ao albergue tomei consciência de algo perfeitamente entusiasmante: já ali tinha estado, naquela mesmíssima terraapesar de em circunstâncias completamente distintas. Foi a ponte medieval, junto à igreja o que me despertou a memória, isso e o hotel em frente à pizzaria que durante todo o jantar me pareceu familiar.
Dois anos antes foi ali naquele hotel que eu e a Sónia, depois de guiarmos toda a noite atravessando Espanha, tomámos o pequeno almoço. Chegámos ali manhã cedinho, eram seis horas e caía uma fria nevrinha molha tolos. talvez tenha sido isso que nos inibiu de explorar a zona mas foi ali em Saint-Jean-Pied-de-Port que parámos para retemperar energias e forrar o estômago. Alguns hóspedes começavam a descer dos quartos e ocupavam os seus lugares em volta das mesas do restaurante, bebiam canecas cheias de café onde molhavam os croissants acabadinhos de fazer. A Sónia e eu também nos fizemos aos croissants mas preferimo-los recheados de queijo. Depois de comidos e bebidos, pagámos e dirigimo-nos para o carro, Espanha tinha ficadio para trás mas faltava percorrer meia França para chegar a Paris, meta final da jornada. Depois seriam quinze dias de férias na cidade luz, quinze maravilhosops dias para tomar o pulso à vida parisiense e para conhecer as suas pérolas mais preciosas: a Torre Eiffel, o Louvre, o Museu d'Orsay, a Notre Dame, L'Arch du Triumph, o Sacré Coeur, Montmartre e os seus artistas. o Marais e os seus palacetes...
Soube-me bem recordar aqueles gratos dias que tiveram Saint Jean um ponto do itinerário.
Ás 20:00 horas já estávamos instalados nos beliches, aconchegados nos sacos cama e dispostos a compensar as horas não dormidas a bordo do combóio.

sexta-feira, novembro 05, 2004

book on progress...capítulo 3

Veio a noite e com ela a percepção do cansaço. E com este o sono, que tentámos enganar indo para o corredor conversar, com as luzes apagadas, ora com o nariz colado à janela, ora com toda a cabeça enfiada do lado de fora. Ás tantas a escuridão ocupou a totalidade das paisagens apenas interrompida por uma ou outra luz distante. Quando cansado de estar no corredor, voltava para a nossa cabine, sentava-me e olhava na direcção da janela. o vidro, iluminado por dentro devolvia-me o reflexo que eu olhava sem ver já que a mente viajava à frente e ia já por terras francesas onde iríamos começar a caminhar.
Antes de abandonarmos o país, na estação de Vilar Formoso fomos despedir-nos da Sandrine e cumprimentar os pais que estoicamente aguentaram o atraso do combóio. Nem quero imaginar o que terão pensado quando viram quatro marmanjos sair da carruagem com a sua filha, distribuindo beijos de despedida...
Por essa altura já era bom que pensássemos em dormir e descansar mas depressa percebemos que nãop ia ser tarefa fácil. Aqueles bancos da segunda classe provaram ser do mais desconfortável que há, incómodos para as costas, sem sítio para poisar a cabeça e sem espaço para esticar as pernas. depressa compreendemos que foi péssima ideia termos preterido os beliches para poupar meia dúzia de euros mas se outra alternativa no momento fomos forçados a tentar cochilar buscando a melhor posição: pernas atiradas para o banco em frente e cabeça poisada no ombro do vizinho.
Acordei estávamos na estação de Burgos. Estremunhado pus a cabeça de fora da janela esperançado de pôr os olhos na catedral ou ao menos nas suas torres. como único monumento que conhecia da cidade, esparava vê-la e admirá-la como se isso fosse um prémio por ter acordado logo ali, especificamente ali. Contudo, nada vi para além de muros delimitando a linha e traseiras de prédios escuros e feios. Como um mistério de pedra, a igreja matriz da cidade permaneceu escondida. "Vê-la-ei no caminho de volta", pensei, "o caminho há-de lá passar...".
A partir daí não houve mais contratempos, ao menos para nós porque para uma brasileira que ia na cabine ao lado a coisa não correu tão bem. A história conta-se em poucas palavras: estávamos a chegar a Donostia-San Sebastian quando a rapariga nos interpela, falando em castelhano para questionar quanto falatava para Vitória. Ora Vitória tinha ficado para trás há uma boa hora! Tentámos dizer-lhe que éramos portugueses e que não precisava falar em castelhano e depois demos a má notícia. ela olhou para nós sem querer acreditar que tinha deixado passar o destino e continua a falar na língua de nuestros hermanos, como se fôssemos espanhóis. "mas nós somos portugueses!" Por que carga de água tem ela de insistir com o castelhano? Será que não entende? Concluimos que não entendia mesmo! O choque deve ter batido com força e desorientou a pobre brasileira. Naturalmente lamentámos o seu azar de ir a dormir quando passámos a Vitória mas nada mais podíamos fazer.
Embalados pelo pisar ritmado da composição percorremos a pouca distância que nos separava de Hendaye. Aí tivemos de colocar, pela primeira vez, as mochilas às costas, experimentando um pouco daquilo que a partir daí seria a nossa rotina diária.
Estava vencida parte da tarefa, a parte que nos levou até ao ponto mais afastado que estaríamos de casa. A outra parte era ir dali até ao ponto de partida da nossa rota, Saint-Jean-Pied-de-Port. Entre o macarrónico francês do Rui com a senhora da bilheteira ea leitura dos mapas de horários, descobrimos os passos a dar: nada mais, nada menos que panhar novo combóio, desta feita com destino a Saint Jean mas com escala em Bayonne.
Novos bilhetes na mão, havia que esperar um par de horas até à hora da partida, pelo que decidimos procurar algum lugar simpático onde aguardar. Enquanto eles se decidiam sobre que direcção tomar, entrei na tabacaria da gare para espreitar revistas e postais e para não variar acabei por comprar alguns.
Há muito tempo que os coleccuiono e aproveito quase todas as oportunidades para aumentar um pouco mais o acervo. não fosse por achar que às vezes são exageradamente caros e poderia já ser dono de uns lagos milhares. Assim, não passo dos 3500...
O que me move? não sei bem... acho que é porque vejo nesses objectos a possibilidade de guardar memórias para a elas regressar sempre que me fazem falata. daí que sejam géneros tão diversos: postais de cidades, de monumentos, de paisagens, de museus... são mais do que ilusttram, são sitios que visitei, pessoas com quem estive, cheiros, cores, sabeores, sensações. Eastá para além da descrição por palavras, olho para aquelas fotografias impressa em cartão grosso e vêm-me imediatamente à cabeça uma catadupa de imagens, como um filme que se desenrola à minha frente e onde sou simultaneamente actor, realizador e espectador.
saímos da gare e virámos è esquerda seguindo uma placa que indicava praias. a ideia era irmos espreguiçar numa quaklquer esplanada junto ao mar até ser hora de embarcar. Ainda andámos alguns metros mas como não vislumbrávamos o oceano pedimos indiocações a um transeunte que nos aconselhou a desistir da ideia. Do sitío onde estávamos, distávamos três quilómetros da praia, ou seja, não valia a pena darmo-nos ao trabalho de ir até lá para regressarmos logo em seguida. A opção foi ficar nas redondezas da ferrovia onde, para mal dos nossos pecados, deparámos com alguns dos mais brilhantes exemplos da proverbial hospitalidade francesa.
Primeiro sentámo-nos na esplanada de um café-restaurante escolhendo a mesa mais à sombra. Esta estava preparada com pratinhos e talherzinhos e copinhos o que, naturalmente, não nos cahteou minimamente. O importante era escapar aos rigores do sol alto e para beber um copo não estorva que a mesa esteja posta para almoçar... Quem assim não pareceu pensar foi o empregado, que além de levar uma eterbnidade a dar conta da nossa presença, fazia questão que nos mudássemos visto que ali, naquela mesa em particular, ou se almoçava ou não se fazia mais nada. Naturalmente com a sua sugestão não fez mais do que perder quatro clientes, nada dispostos a ir apanhar com a cabeça ao sol só porque o senhor se coibia de mudar a loiça para outro lado.
Já que nos tínhamos de mudar fizemo-lo para o café mais concorrente que encontrámos, exactamente do outro lado da rua. Não ganhámos grande coisa com a mudança já que bastou tentar comprar umas garrafas de água fresca para descobrirmos que este empregado que nos atendia era tão limitado e irascível quanto o primeiro. No início o problema foi fazer-lhe entender o que desejávamos, visto que o nosso francês não é fantástico e os gauleses parecem pensar que a sua língua é dominada pelos restantes hóspedes do planeta. Depois lá nos deu umas garrafitas pequenas que íamos a ceitar quando descobrimos que também vendia maiores. Compensava mais escolher as grandes mas quem nos diz que ele estava disposto a trocar? Ainda o fez a um de nós mas lá deve ter compreendido que ia perder dinheiro e quando chegou à minha vez disse que não podia trocar. Azar o dele que ainda não estava paga. Assim, nem grande nem pequena, não vendeu nenhuma e deu u triste espectáculo de como ser comerciante.
A tão anunciada escala em bayonne, escala tão prolongada que deu tempo para irmos tomar um café nas redondezas do apeadeiro foi logo ali ao dobrar da esquina. Em quinze minutos pusemo-nos lá, bem menos do que o tempo de espera da partida para Saint-Jean.
No café foi curioso encontrar um cachecol da selecção portuguesa por cima do balcão mas não quis interrogar a senhora sobre a sua origem. Ainda me respondia torto por quere saber se era de Portugal e de onde e eu não estava para me sujeitar a isso. Bastou-me ver que o símbolo estava ali, a mil e tal quilómetros da pátria, evocando o vermelho e verde nacional.
Mais uma vez olhámos para os mapas discutindo sobre o desafio mais próximo: a escalada dos Pirinéus. só o nome impóe respeito, ainda mais quando está bem presente o facto de ser a montanha mais alta a ultrapassar na nossa rota. Ainda mais quando essa montanha se interpõe à nossa frente logo no primeiro dia, quando estámos mais verdes e menos preparados.
De volta ao apeadeiro reparo na casa de banho dos homens: um urinor em pleno cais apenas resguardado por um tapume de mármore. até estava meio "apertado" mas a vergonha de ficar ali exposto fez-me abandonar a ideia. aguentaria mais um pouco até encontrar um W.C. mais convencional.
No cais número dois, de onde ia sair a nossa boleia, um grupo de italianos, entre jovens e menos jovens tomava diligências para averiguar se o combóio que ali descansava era o mesmo destinado a Saint-Jea-Pied-de-Port. Liderados por uma enérgica avozinha de olhos azuis lá se convenceram que era mesmo aquele e como descobriram que íamos todos para as mesmas bandas, logo quiseram saber de onde vínhamos e se era a primeira vez.
O percurso até lá era belíssimo. A linha bordejou praticamente sempre um rio muito bonito, ora deslizando calmamente em direcção ao mar, ora saltitanto sobre pedras produzindo rápidos e ameaços de cascatas. À medida que nos afastávamos do litoral cresciam os montes em volta e mudava a vegetação. nas zonas mais baixas dominavam os prados e os terrenos cultivados ao passo que nos topos, ou a meia encosta dos Pirinéus Atlânticos surgiam luxuriantes florestas de árvores variadas cujas espécies não sei nomear. O resultado é uma mescla de verdes diferentes que o sol de fim de Julho tornava mais brilhante e penetrante.
A chegada a Saint-Jean-Pied-de-Port provocou-me um certo formigueiro e frio no estômago. Estava ali, tinha levado a intenção até um estádio mais efectivo. "Um dia vou..." foi substituído por um "estou aqui!" e podia agradecer áqueles companheiros que tinha a meu lado. Eles conseguiram tornar a proposta viável demais para ser recusada, conseguiram torná-la aliciante demais para ser deixada de parte.
Mas se aqueles três tinham tido o seu papel como instigadores, como esquecer o apoio e o incentivo de alguém que ficara em Lisboa a torcer por mim? Se não fosse a Sónia a forçar-me a vir, talvez a oportunidade se gorasse por achar que haveriam outras vezes... Foi ela quem selou o destino quando me deu o seu aval e me desejou um bom caminho.
Neste turbilhão de pensamentos atirei a mochila para trás das costas e segui o pessoal. Creio que não minto quando digo que uns noventa e cinco por cento daqueles passageiros se iriam por em marcha, rumo a Santiago, no dia seguinte, como nós.
A primeira missão foi arranjar a credencial de peregrino, uma espécie de passaporte e salvo-conduto que identifica quem se dirige a santiago e dá acesso aos albergues do caminho. Teríamos de procurar uma Associação de Amigos do Caminho de Santiago onde nos dariam o dito documento e nos indicariam onde doirmir.
Franqueámos as portas da cidadela histórica para entrarmos num mundo parado no tempo. As ruas preservadas evocavam a idade média mas sem a porcaria a atapetar as pedras e os animais a partilhar o espaço com as pessoas. As casas estavam mais arranjadas do que alguma vez estiveram na época medieval e se a cidadela foi durante muitro tempo necessária à defesa dos cidadãos fechando-se às ameaças de fora, agora convida todos a entrar mantendo as portas abertas.

Quinta do Véu Branco

Costuma dizer-se à boca cheia que Sintra encerra a magia do sobrenatural, que é terra habitada por fantasmas e espíritos, alguns bons, outros nem tanto, que habitam os solares, os palácios e casas construídas pelas encostas.
Cada propriedade tem os seus próprios mitos, as suas próprias histórias que vão passando de boca em boca pela voz dos seus donos ou das pessoas que lá trabalham. Faz parte da sua mística e atracção a existência destas lendas, quantas vezes corroboradas por factos insólitos que sucedem inexplicavelmente à vista de alguma gente. Por vezes há uns senhores cientistas ou pessoas menos crédulas que arranjam explicações perfeitamente racionais e científicas mas não chegam para afastar a crença de que há para aqueles lados uma força e energia diferentes.
Óscar, desde sempre se sentiu fascinado e atraído por este folclore, alimentando a secreta ambição de um dia vir a ser ele a avistar uma alma penada ou a dar de caras com um fantasma. Sempre que podia, passava temporadas na casa de campo de um amigo de infância, situada bem no sopé desse monte que chamaram da Lua, casa grande omnipresentemente vigiada pelos cumes sintrenses.
A janela do quarto que ocupava na velha mansão abraçava o verde da serra e dela se podiam ver alguns dos velhos palácios que lhe dão fama e lhe granjearam o reconhecimento da Unesco. Não se cansava de ficar sentado numa espreguiçadeira, junto à piscina e de onde podia abarcar a totalidade do cenário.
O seu amigo possuía diversas propriedades por esse país fora e raramente se dignava a aparecer na Quinta do Véu Branco. Preferia o bulício urbano à calmaria da montanha, a proximidade das diversões da capital ao silêncio das noites de Sintra. Só muito ocasionalmente abandonava a sua vivenda na Lapa para se passear nas restantes propriedades e na maior parte dessas ocasiões lograva rumar para sul, para Vilamoura e outros Algarves. Óscar tinha dessa forma luz verde para ocupar a Quinta do Véu Branco durante o tempo que quisesse. Era um acordo de que beneficiavam os dois – Óscar tinha o seu refúgio predilecto à disposição e Fernando dormia descansado sabendo que o seu recanto bucólico estava em maior segurança de vândalos e ladrões.
Quinta do Véu Branco… a origem do nome perdia-se na imensidão dos tempos, sem que houvesse quem soubesse explicar tão estranho baptismo. Fernando ouvia os seus avós comentarem qualquer coisa sobre uma história de mouras encantadas que outrora morariam por ali mas nunca aprofundou a questão. Outras teses apontavam para uma donzela que na medieval era se tinha enamorado por um pagem e que se tinha suicidado quando este morreu na guerra para defender o seu amo. Apesar de todas as especulações o nome continuava um. Um painel de azulejos aposto como decoração numa fonte aninhada num cantinho obscuro da Quinta testemunhava a antiguidade do nome: datado de 1789 representava o edifício original e um estranho véu esvoaçando à altura da varanda principal da casa. Em baixo, uma inscrição arcaica declarava serem aqueles os domínios do Véu Branco. Era um mistério e apesar da propriedade ser pertença da família há várias gerações aparentemente não suscitava curiosidade suficiente para suscitar uma investigação mais aprofundada.
Meados de Agosto e Óscar lia um livro junto à piscina num final de tarde quente. O ambiente abafado e o silêncio reinante, aliados a um substancial petisco momentos antes, tiveram como consequência o cair num sono profundo.
É cerca de meia noite quando, estremunhado e alarmado pelo bater de asas de uma coruja, Óscar abre os olhos e pode admirar o espectáculo que a ténue luz da Lua proporciona naquele pedaço do jardim onde a piscina se aninha. A água adquire reflexos dourados, como se um manto de discreta claridade descesse sobre a noite, amenizando a escuridão. De repente nota num objecto brilhante no fundo da piscina, um objecto que o atrai e lhe desperta a curiosidade. Continua calor, um estranho calor que a ausência de vento ou brisa faz parecer abrasador. Estimulado pela sua curiosidade e sem medo de se resfriar atira-se às águas produzindo uma enorme onda. Mergulha e por lá fica alguns minutos, dois ou três que parecem mais. Vem à tona e volta a mergulhar. Não encontra nada apesar de quase poder jurar que estava ali algo brilhante. Decide sair. Dá vigorosas braçadas rumo à borda mais perto, braçadas que o fazem relembrar os seus tempos de sonhador quando ambicionava ser olímpico ou campeão reconhecido no mundo todo. Era puto, podia sonhar o que quisesse que nada lhe haveria de fazer mal. A realidade, porém, não fez dele um valor para a estirpe que perseguia…
Preparava-se para sair quando à sua frente um estranho vulto, uma silhueta de mulher com longos cabelos caídos sobre as costas e um véu solto cobrindo-a dos ombros aos pés se aproximava. Sem conseguir articular qualquer palavra limitou-se a olhar aquela mulher de porte leve e pele clara que lentamente desce os degraus da piscina, com véu e tudo, na sua direcção. Não consegue esboçar qualquer reacção e deixa-se enlear num beijo, um longo e pronunciado beijo que o afunda para dentro de água. Sente como se o tempo parasse, como se não fosse necessário voltar à superfície para nova golfada de ar fresco. Sem saber como vê-se atirado contra a parede da piscina, preso por um nó de pernas à altura da cintura. Um turbilhão de sensações atravessam-lhe o corpo e um furacão de emoções esmaga-lhe a mente. Sente-se perder o controlo, como se alguma vez o tivesse tido, sente na pele o suave toque de outra pele, macia e fresca que liberta um forte odor a magnólias. Quer abrir os olhos mas não consegue. Nem precisa… sabe que nesse instante lhe passam as mãos pelo peito, vão até mais atrás e lhe cravam as unhas nas costas. Um frémito de prazer solta-se-lhe pela boca e uma sucessão de gemidos abafados pelo ondular da água ecoa na imensidão do vazio serrano daquela hora. Sente que aquele instante lhe basta.
Na manhã seguinte um véu rendado, completamente encharcado e enrodilhado repousa junto às escadas que levam ao tanque de luxo. Ouve-se um grito de pânico que trespassa as copas das árvores e assusta os pardais. Dona Maria, a mulher do caseiro, descobre Óscar morto e afundado.

segunda-feira, outubro 25, 2004

book on progress... Capítulo 2

Se fôssemos gente supersticiosa teríamos visto, logo no primeiro dia, vários sinais a indicar mau agoiro. Logo na Gare do Oriente, a apenas alguns minutos da partida faltava o Hugo com os bilhetes. Bem se lhe tentou ligar para o telemóvel mas só nos respondia a menina da Tmn indicando o número desligado. sem outra opção o remédio foi esperar, impacientemente, mas esperar. E quando já o formigueiro se tornava insuportável e quase se conseguia ver a automotora a vir de santa Apolónia, eis que chega o jovem, de mãos nos bolsos, com a descontracção de quem sabe que o combóio não parte sem ele.
Foi por uma unha negra.
Tempo para despedidas rápidas e mais ou menos chorosas, daquelas que é costume nas estações ferroviárias. Mochilas atiradas para o compartimento de 2ª classe e cabeças enfiadas para fora da janela, esboçando adeuses e até breves. Para trás ia ficando Lisboa, o rio Tejo e as construções futuristas da Expo. Para a frente, Hendaye, na fronteira hispano-gaulesa.
Estávamos muito longe de imaginar que daí a algumas horas estaríamos parados, algures entre o Entroncamento e Pombal. por causa de uma avaria.
Depois de uma paragem "técnica" na cidade dos fenómenos, percorremos alguns quilómetros para parar, no meio de nada, numa zona de obras com uma só via, entre taludes de terra recém construídos. Os passageiros foram saíndo, ocupando as bermas da linha e deixando os seus compartimentos para apanhar algum ar fresco. Foi interessante constatar tantos jovens, grupos de amigos, uns a caminho de férias, outros regressando a casa. Uns dando toques na bola, outros jogando às cartas sentados nas traves dos carris, outros ainda, formando círculos e conversando animadamente, como nós.
O ar abafado do anoitecer, pegajoso e húmido agarrava-se à pele. Deste tempo diz-se de trovoada mas a julgar pela ausência de nuvens não penso que fosse. No céu tons laranja fosco e rosas fortes marcavam o final do dia e auguravam um dia seguinte com quenturas de Verão. Fora das carruagens e a caminhar para a impaciência, os jovens e menos jovens limitavam-se a apreciar o final de tarde e a questionar os funcionários da CP, sempre que estes passavam, sobre a resolução do problema. Finalmente chegou a automotora para empurrar a compiosição até Pombal, entre gritos de "aleluia" e "até qu'enfim". De tudo o que podia correr mal, foi a força motriz daquele conjunto dfe carruagens a dar parte de fraca e a desistir de nos puxar até França.
Sem relógio, não sei quanto tempo perdemos mas não é preciso ser génio para perceber que foi muito mais que o admíssivel. Como disse, se fôssemos gente supersticiosa teríamos visto no ocorrido a acção de alguma força oculta divertindo-se a jogar connosco. Felizmente o nosso estado de espírito, a nossa vontade e entusiasmo estavam para durar e aquele contratempo não passou disso mesmo, um mero e inconveniente atraso.
Em Pombal substituiram a automotora avariada e devolveram a normalidade à viagem. Quanto a nós, aos poucos vencemos a timidez e palavra puxa palavra fomos conhecendo outros passageiros: um rapaz que já fez o caminho 25 vezes, partindo de sítios diferentes; um californiano em demanda pela Europa, rumo aos países de Leste; a sandrine, luso descendente de Paris rumo à terra dos pais perto de Vilar Formoso... Gente com histórias dentro e percursos diversos e aleatórios. Em comum o facto do destino, ou a coincidência os ter guiado a todos até aquele dia, aquela hora à mesma carruagem do Sud Express. Num ápice aquela viagem transformou-se num cruzamento de vidas e existências, um nó a unir destinos diferentes e a acrescentar algo a cada um deles e a cada um de nós. Provavelmente nunca mais teremos oportunidade de nos encontrarmos, de nos cruzarmos mas aquela troca breve de palavras e conversas de ocasião tornou o mundo mais rico e melhor preenchido. Apesar de breve, apesar das diferenças. apesar de não nos conhecermos, houve disponibilidade para ouvir e partilhar histórias. se ao menos o humanidade se desdobrasse em momentos destes...

segunda-feira, setembro 27, 2004

Hoje, entrego o relatório de estágio e deixo para trás uns bons anos de estudante. Amizades ganhas, outras perdidas, aprendi coisas e passei a desdenhar outras.
O meu percurso ganhou, indiscutivelmente, com mais esta etapa mas está longe, muito longe, de estar terminado.
Amanhã começa uma nova vida dentro da vida e nessa vida ainda tenho muito para fazer, muito para dar e receber.
Amanhã volto, mais crescido.

passos de sombra

Salto à frente da sombra,
mas ela corre mais que eu
guia os meus passos, avança,
pelos caminhos qu'escolheu.
Vou de olhos postos nela,
procuro que se distraia
mas dela só sabe ela.
E quando olho para os seus passos
vejo com admiração
que dela não são dela
não são passos de sombra,
são passos meus.

segunda-feira, setembro 13, 2004

book on progress...

Da janela do autocarro os olhos despedem-se da imagem da cidade e das torres da catedral a sobressair do casario do casco histórico. Compostela fica para trás e aos poucos, à medida que a camioneta avança rumo a Portugal não posso deixar de cair em mim e pensar que em breve voltarei ao dia a dia normal, tão diferente dos hábitos e rotinas adquiridas nesta viagem. Deixarei de acordar com a alvorada para caminhar, de buscar um albergue para pernoitar e descansar. Deixarei de comer aquelas benditas saladas de atúm e os substanciais menús de peregrino ou de fazer a lida diária, da lavagem das peúgas ao esfregar das camisetas, coisas tão banais na Via Láctea mas que perdem significado e pertinência no quotidiano habitual.
Por detrás de mim uma passageira grita para o motorista levantar o som do rádio. Queixa-se que não ouve a música e que assim a viagem será insuportável. Tê-la ali a gritar aos ouvidos desperta-me dos meus pensamentos e só me apetece mandá-la calar, de preferência com os mesmos modos bruscos e mal educados. Contudo deixo-me estar, regresso de uma experiência rica e preciosa demais para me deixar embarcar em discussões. Dizer-lhe que se continua a berrar, com toda a certeza nãoirá ouvir rádio alguma não lhe iria parecer argumento bastante e por isso fecho os olhos e deixo-me ir, revivendo os momentos que a cada minuto vão ficando mais distantes.
Vou sozinho com destino a Lisboa, tal como sozinhos partiram os restantes membros do grupo, rumo aos mais diferentes destinos: o Hugo para o pé dos pais em Vila Praia de Âncora, o Hélder para Foz Côa e quanto ao Rui, da última vez que deu notícias estava no Meco a apanhar sol.
Confesso que não esperava que a separação acontecesse em Santiago, tinha imaginado que nos iríamos despedir com um até breve e entre fortes abraços, no mesmo cais da Gare do Oriente que nos viu partir um mês antes. Porém, contra todas as minhas expectativas, foi ali mesmo na cidade meta que cada um destes companheiros e amigos deu o seu abraço e proferiu o seu "até um destes dias". Excepto o Rui que nos largou em Azofra respondendo a um apelo inadiável da sua consciência e a uma necessidade interior de avançar a solo.
Quando entrei no autocarro sentia-me triste com aquela separação e enquanto acenava para Ángel e Marina, os amigos catalães que nos acompanharam nos últimos 400 Km, pensava em como era estranho serem aquelas duas pessoas as últimas caras conhecidas que via antes de ir para casa. Mas o destino tem destas coisas e não vale a pena questionar os seus desígnios. Que graça teria esta vida se tudo acontecesse tal qual se está à espera, sem reviravoltas, sem surpresas, sem imprevistos? Esse é o tutano da vida, o mesmíssimo que John Keating, o professor do "Clube dos Poetas Mortos" nos estimulava a sugar e aproveitar...
Talvez por reflectir em torno destas coisas a tristeza se tenha dissipado rapidamente. Compreendi, até pela necessidade pessoal de digerir todas as emoções e sensações, que tanto o Hélder como o Hugo deviam sentir o mesmo e decerto precisavam de algum espaço e distância. Não muita pois as amizades que o caminho testemunha necessitam de alimento, de serem acarinhadas e preservadas pelo contacto frequente. As outras, já se sabe que também mas estas, depois de ultrapassadas tantas dificuldades em conjunto, quase soam a desperdício se não forem defendidas.
Quando entrei no combóio de ida não tinha presente nada do que veio a acontecer. Do Caminho de Santiago conhecia alguma história e lendas a ele associadas, tudo através de pesquisas na internet. Li coisas sobre as distâncias e as localidades que atravessa, sobre os cuidados a ter e a preparação a fazer mas nada disso previne para o que é o caminho. para o conhecer realmente e para o conseguir compreender só há uma forma: calçar as botas e caminhar, basta seguir as setas amarelas.

quinta-feira, setembro 09, 2004

1000passos

Foram mais de mil. Arriscaria dizer mais de um milhão. E o caminho é que nos fez...